Um sermão de Thomas Cranmer (parte 1)

Da salvação da humanidade, somente por Cristo,
Nosso Salvador, do pecado e da morte eterna

Thomas Cranmer, Arcebispo da Cantuária

PELO fato de que todos os homens são pecadores, ofendem a Deus e transgridem suas leis e mandamentos, nenhum homem poderá justificar-se e fazer-se justo diante de Deus pelos seus próprios atos, obras e feitos, mesmo que sejam bons, pois todo homem está obrigado pela necessidade intrínseca da natureza humana a buscar justiça e justificação distintas, que devem ser recebidas das mãos do próprio Deus, a saber, a remissão e o perdão de seus pecados, abusos, e ofensas que tenha cometido. E essa justificação, que assim recebemos pela misericórdia de Deus e mediante os méritos de Cristo, a qual abraçamos pela fé, é tomada, aceita e permitida por Deus para nossa perfeita e plena justificação. 

Para uma compreensão mais completa que a anterior, é nosso dever e obrigação recordar sempre a grande misericórdia de Deus, e estando todo o mundo envolto no pecado e rompido com a Lei, Deus enviou o seu único Filho, Cristo Jesus, nosso salvador, para cumprir a Lei por nós, derramando seu sangue preciosíssimo a fim de fazer sacrifício e satisfação ou (como poderia ser chamado) expiação de nossos pecados diante do Pai, para acalmar a Sua justa ira e indignação concebida  contra nós. De tal modo que os infantes, tendo sido batizados e mortos em sua infância, são pelo seu sacrifício lavados de seus pecados, atraídos ao favor de Deus e feitos filhos e herdeiros em seu reino no céu. E os que pecam em atos e feitos depois de seu batismo, quando voltam-se outra vez à Deus sem fingimento, são igualmente lavados por este sacrifício de seus pecados, de sorte que não caia uma só mancha de pecado que possa ser imputada a sua condenação. É a justificação da qual fala São Paulo quando diz: "Sabendo que o homem não é justificado pelas obras da lei, mas pela fé em Jesus Cristo, temos também crido em Jesus Cristo, para sermos justificados pela fé em Cristo, e não pelas obras da lei; porquanto pelas obras da lei nenhuma carne será justificada.".

E embora essa justificação seja livremente concedida a nós, não nos é concedida tão livremente, de tal forma que não haja um preço a ser pago pela mesma.

Mas neste ponto o raciocínio do homem poderá assombrar-se, ao pensar desta maneira. Se se paga um preço pela nossa redenção, então não nos é concedida livremente porque um réu que paga sua fiança não é solto livremente, pois se fosse solto livremente, não deveria haver uma fiança a ser paga, afinal, o que é ser solto livremente senão ser posto em liberdade sem pagar fiança alguma?

Este raciocínio é superado pela maior sabedoria de Deus neste mistério de nossa redenção, pois conciliou juntos sua justiça e misericórdia, de maneira que nem nos condena pela justiça ao cativeiro eterno do diabo e sua prisão no inferno, sem solução eternamente, sem misericórdia, nem tampouco por sua misericórdia nos salva claramente sem que haja exigências da justiça ou pagamento de um justo resgate, aliás, com sua infinita misericórdia tornou sua justiça mais justa e reta. Nos mostrou sua grande misericórdia salvando-nos de nosso cativeiro passado sem requerer o pagamento de alguma fiança ou expiação de nossa parte, coisa que seria impossível para nós. E como não nos correspondia fazer isto, proporcionou um pagamento para nós que foi o  precioso corpo e sangue de seu próprio e mais querido Filho Jesus Cristo, quem, além do pagamento, cumpriu a lei perfeitamente para nós. E assim, a justiça de Deus e a sua misericórdia abraçaram-se conjuntamente e cumpriram o mistério de nossa redenção.  Desta união da justiça e misericórdia de Deus fala São Paulo no terceiro capítulo de Romanos: "Porque todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus; sendo justificados gratuitamente pela sua graça, pela redenção que há em Cristo Jesus. Ao qual Deus propôs para propiciação pela fé no seu sangue, para demonstrar a sua justiça pela remissão dos pecados dantes cometidos, sob a paciência de Deus." E no décimo capítulo: "Porque o fim da lei é Cristo para justiça de todo aquele que crê." E no oitavo capítulo: "Porquanto o que era impossível à lei, visto como estava enferma pela carne, Deus, enviando o seu Filho em semelhança da carne do pecado, pelo pecado condenou o pecado na carne; para que a justiça da lei se cumprisse em nós, que não andamos segundo a carne, mas segundo o Espírito."

Nestas passagens mencionadas, o Apóstolo toca em três pontos especialmente, que devem estar juntos em nossa justificação: da parte de Deus sua grande misericórdia e graça; da parte de Cristo, a justiça, a saber, a satisfação da justiça de Deus, o preço de nossa redenção pelo oferecimento de seu corpo e o derramamento de seu sangue com o cumprimento da Lei perfeita ; e de nossa parte uma fé verdadeira e viva nos méritos de Jesus Cristo, a qual não pertence a nós mesmos senão pela obra de Deus em nós. De maneira que a nossa justificação não está somente na misericórdia e na graça de Deus, mas também na sua justiça, a qual o Apóstolo chama de "a justiça de Deus", e consiste em pagar nossa fiança e cumprir a lei. E assim a graça de Deus não exclui a justiça de Deus em nossa justificação e somente exclui a justiça do homem, a saber, a justiça de nossas obras como mérito para merecer nossa justificação. Portanto, São Paulo não declara aqui nada a favor do homem sobre sua justificação, senão uma fé verdadeira e viva, que não obstante é um dom de Deus e não obra do homem. Entretanto, está fé não exclui o arrependimento, a esperança, o amor, o temor e o respeito a Deus, que devem unir-se a fé em cada homem que seja justificado; porém exclui a justiça daqueles que justificam. De maneira que, embora todos esses elementos estejam presentes naquele que é justificado, não obstante não se justificam em conjunto. Tampouco aquela fé exclui a justiça de nossas boas obras, que devem ser feitas necessariamente como dever para com Deus (porque somos obrigados a servir a Deus com as boas obras que foram ordenadas pela sua sagrada Escritura todos os dias da nossa vida),  porém as exclui como base para salvação, para que não sejam feitas com a intenção de nos tornarmos bons por fazê-las. Porque todas as boas obras que possamos fazer são imperfeitas e portanto incapazes de merecer nossa justificação, porém a nossa justificação vem livremente pela misericórdia de Deus e de uma misericórdia tão grande e livre que estando todos incapazes de pagar parte alguma de sua divida por si mesmos, nosso Pai Celestial dignou-se em sua infinita misericórdia, sem mérito ou merecimento algum de nossa parte, preparar-nos as joias mais preciosas do corpo e do sangue de Cristo, pelo qual pagou a dívida de todos, cumprindo a Lei e satisfazendo sua justiça plenamente. De maneira que Cristo agora é a justificação de todos os que realmente creem nele. Por eles pagou a dívida com sua própria morte. Por eles cumpriu a Lei em sua vida.

De maneira que agora nele e por todo genuíno Cristão, o homem pode chamar-se cumpridor da Lei, posto que a transgressão de sua fraqueza foi suprida pela justiça de Cristo.


Thomas Cranmer (1489-1556) foi Arcebispo de Cantuária durante os reinados de Henrique XVIII e Eduardo VI (1533-1553), sendo o responsável pela reforma da Igreja da Inglaterra. É pai idealizador da Tradição Anglicana Reformada expressa no Livro de Oração Comum de 1662. Foi autor de vários livros, incluindo as duas primeiras edições do Livro de Oração Comum.


Tradução: Fabio Farias


* N.T - As palavras em itálico não pertencem ao original, foram adicionadas para melhor entendimento ou fluência.

** N.T - Textos bíblicos retirados da Almeida Corrigida Fiel - 1994.

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